sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Intolerância Religiosa e Genocídio da Juventude Negra - Por Big Richard e Maria do Carmo Rebouças


Este ensaio se propõe a provocar uma reflexão sobre a violência sistemática e institucionalizada a que está exposta a população negra no Brasil, a partir da análise de dois fatos recentes de violência policial e intolerância religiosa. Essa análise, bastante preliminar, joga luzes no racismo institucional que organiza e opera toda a violência contra o negro brasileiro. Ao final propomos algumas iniciativas para superação do racismo.

Juventude Negra.  Genocídio. Auto de resistência. Intolerância religiosa.
Big Richard (1) - Maria do Carmos Rebouças (2)

Temos acompanhado a uma série de barbáries cometidas contra a população negra brasileira nos últimos anos, com um perceptível aumento em 2015. Tem-se a impressão que os ganhos sociais dos últimos anos vieram acompanhados de uma fortíssima reação de um grupo conservador que atua politicamente na desconstrução das conquistas e também no aprisionamento social e mental[3] daqueles que são os sujeitos dos avanços conquistados.
Com os direitos sociais fortalecidos na letra da lei, percebe-se uma tentativa da ala conservadora da burguesia de estabelecer um campo de batalha. É como se vivêssemos uma correlação de forças operando surda e mudamente dentro da área da significação, conforme o sociólogo francês Pierre Bourdieu[4].
Em uma breve olhada nos jornais do mês de novembro de 2015, veremos ações de repressão e alijamento sociocultural pululando diante de nossos olhos. Trazemos aqui dois casos paradigmáticos ocorridos em duas importantes cidades brasileiras e representativos da violação sistemática dos direitos humanos da população negra no país.
Um ato de intolerância religiosa materializado com o incêndio criminoso de um templo de religião de matriz africana do Distrito Federal[5]:

Um barracão do templo Axé Oyá Bagan, de religião de matriz africana, foi incendiado na madrugada desta sexta-feira (27/11), no Núcleo Rural Córrego do Tamanduá, entre as regiões do Lago Norte e do Paranoá. O espaço também é conhecido como Casa da Mãe Baiana e fica dentro de uma chácara. As chamas tiveram início por volta das 5h.

Esse é o mais recente caso de ataque a terreiros na região do DF e Entorno. Em setembro, ao menos outros dois templos de religiões afro-brasileiras foram atacados: um em Santo Antônio do Descoberto (GO) e, outro, em Águas Lindas de Goiás (GO). Ambos foram incendiados, sendo que o primeiro já tinha sido alvo de outras ações. (CORREIO BRAZILIENSE, 27/11/2015).

Crimes como este tem sido documentados e denunciados pelo seguimento religioso de matriz africana e por vários movimentos sociais[6], assim como vem sendo estudado pela academia onde constata-se que grande parte dessas ações são perpetradas por grupos neopentecostais[7] e se baseiam no mais arcaico fundamentalismo religioso.

Este fundamentalismo está associado à história da formação identitária brasileira, com forte influência da igreja católica em seus primórdios e nos últimos anos tem sido ressignificado pelos cristãos neopentecostais que por meio de seus cultos, de suas representações políticas e da televisão produzem e massificam conteúdo discriminatório e demonizador do diferente, da identidade contrária à sua, neste caso, os praticantes das religiões de matriz africana [8].

Este quadro de tensão identitária e de pertencimentos está levando a um processo degenerador do “eu brasileiro” que Amin Maalouf chama de identidades assassinas[9]. Com efeito, o assassinato, o alto risco de morte, o encarceramento e a demonização de sua imagem é algo que tem acompanhado o negro ao longo do processo de construção da história do Brasil. Conforme Fanon[10], a demonização, o imaginário relacionado ao nada, a coisificação do ser humano de origem africana é que parece permitir o assassinato brutal de jovens negros no Brasil, como veremos a seguir.

O segundo caso se relaciona ao genocídio da juventude negra. Conforme notícia publicada pelo jornal Extra do Rio de Janeiro [11], no dia 29 de novembro, policiais militares assassinaram cinco jovens negros que saíram para comemorar o primeiro emprego do mais jovem deles, um estudante de 16 anos. Os policiais dispararam mais de 100 tiros contra o carro, todos os jovens morreram. Os policiais alegaram resistência à abordagem policial e tentativa de fuga, caracterizada, desde a época da ditadura, como “auto de resistência”[12].

Policiais fuzilam cinco jovens, desfazem local do crime e tentam registrar ocorrência na DP como auto de resistência. Só este ano houve quatro casos iguaizinhos. (JORNAL EXTRA, 230/11/2015)

Cinco jovens morreram na noite de sábado após serem baleados no carro em que estavam, na comunidade da Lagartixa, que fica no Complexo da Pedreira, em Costa Barros, na Zona Norte do Rio. De acordo com parentes, as vítimas tinham voltado de um passeio no Parque Madureira e resolveram sair novamente para fazer um lanche, quando foram surpreendidas pelas dezenas de tiros disparados por policiais militares do 41º BPM (Irajá) na Estrada João Paulo. O caso foi registrado na 39ª DP (Pavuna). (JORNAL EXTRA, 230/11/2015)

Segundo dados do Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro[13], somente naquele Estado, entre 2001 e 2011, mais de 10 mil pessoas foram mortas pela Polícia Militar em situações formalizadas como auto de resistência. Entre 2009 e 2013, em todo o Brasil, houve 11.197 mortes causadas por intervenções policiais, número maior ao número de pessoas mortas em 30 anos por todas as polícias dos EUA, país com população quase 40% maior que a brasileira.

Dentro deste espectro, dados de pesquisa da Universidade Federal de São Carlos[14] mostram que as maiores vítimas da violência policial são os jovens. No caso do Estado de São Paulo, 78% das pessoas mortas pela polícia entre 2009 e 2011 tinham de 15 a 29 anos. O Mapa da Violência 2014[15] esclarece o que já é sabido historicamente pelas famílias negras, o número de negros mortos em decorrência de ações policiais para cada 100 mil habitantes é três vezes maior que o registrado entre a população branca.

A violência a que segue exposta a população negra demonstra que continuamos inseridos dentro de uma realidade de colonialismo interno, opressor e reprodutor dos signos trazidos pelos antigos (?) colonizadores externos – é a afirmação e continuidade da reprodução dos valores brancos, ocidentais e excludentes. É a afirmação do racismo à brasileira.

A seletividade racial das instituições públicas, as construções simbólicas e discursivas diferenciadas elaboradas em torno das mortes de negros e brancos, os diferentes graus de comoção que as mortes de jovens negros e brancos geram o descaso com relação à intolerância à prática da religião de matriz africana, evidenciam a forte presença do racismo e da discriminação racial na configuração deste triste quadro.

No caso brasileiro, o racismo não é uma questão restrita ao plano individual. O racismo se reproduz no âmbito das instituições, sejam elas públicas, como instituições do Estado ou privadas, como família, igreja, etc.

No âmbito público, o sistema de segurança pública brasileiro reproduz em sua institucionalidade os valores culturais racistas forjados em um passado colonial escravagista. O racismo institucional da polícia brasileira desumaniza os agentes do Estado e extermina o inimigo, que é negro.

Qualquer estratégia que vise garantir a fruição dos direitos humanos dos negros no Brasil deve passar, portanto, pelo combate ao racismo institucional porque é esse racismo que determina qual religião pode ser professada e quem volta pra casa no final do dia. É esse racismo que organiza e opera violência contra negros e negras, suas crenças, valores e cultura.

Nesse sentido, é imperativo que todo o movimento social que luta por direitos humanos se unam à luta do movimento social negro e o de juventude para que se constituam como um grupo de pressão com força suficiente para colocar na agenda política do país o combate à violência sistemática, advinda do racismo institucional, que vem sofrendo a população negra em seu direito à vida, direito de ir e vir e de liberdade religiosa.

Uma proposta de ação dentro de uma estratégia mais ampla seria a de propor ao Governo Federal o condicionamento de repasse de verba federal para as políticas estaduais de segurança pública,[16] à comprovação de ações efetivas de redução da letalidade de suas polícias. Outra proposta seria de realização de audiência com os Procuradores de Justiça Estaduais para pedir que orientem os promotores a cumprirem a orientação do Conselho Nacional do Ministério Público de combate ao auto de resistência seguido de morte[17].

Outra possibilidade de atuação seria por meio da internacionalização dos casos de violência sofrida pelos negros brasileiros. Isso poderia ser feito com a formulação sistemática de denúncias junto aos órgãos de supervisão dos direitos humanos como ONU e OEA.

A cada dia que assistimos ao pastor pregando em seus púlpitos eletrônicos (concessões estatais) contra os direitos da maioria minorizada, nos sentimos violentados. A cada ato de violência e intolerância contra os terreiros de matriz africana, nos sentimos violentados. Sempre que um jovem negro morre violentamente devido a ação de um agente público, nos sentimos violentados. A cada vez que as emissoras televisivas reforçam os signos de exclusão, subalternidade e desumanização do ser humano negro, nos tratam como sujeitos invisibilizados[18], nos sentimos violentados. A cada momento que um desses atos acontece, contribui para o fim do pacto social constitucional que nos reconhece a todos como iguais.

Concluindo, não pretendemos aqui esgotar a discussão sobre a violência contra a população negra nem tínhamos a pretensão de ser exaustivos na proposição de estratégias de superação do racismo no Brasil. O ensaio objetivou uma análise bastante preliminar que deverá ser adensada em outros trabalhos. Consideramos que qualquer proposição de luta para uma verdadeira emancipação social, garantia dos direitos humanos e pelo bem viver da população negra só será possível por meio de coordenação de ações da sociedade civil organizada para cobrar dos entes estatais o cumprimento de seu papel na garantia dos direitos humanos de negros e negras e sejam responsabilizados por suas ações e omissões.


[1]  Hamilton Richard Alexandrino Ferreira Dos Santos, Richard Santos, é doutorando em Ciências Sociais no CEPPAC-UNB, mestre em comunicação pela Universidade Católica de Brasília, especialista em História e Cultura no Brasil pela Universidade Gama-Filho, e graduado em Ciências Sociais pela Universidade Metodista de São Paulo. Membro do Observatório Latino-americano da Indústria de Conteúdos Digitais na Universidade Católica de Brasília, diretor da Nação Hip Hop Brasil. No movimento Hip Hop é conhecido como Big Richard.
[2] Advogada, doutoranda em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional da Universidade de Brasília, especialista em Direitos Humanos, foi advogada da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.

[3] Ver- Foucault, Michel. Vigiar e punir, 1987.
[4] Bourdieu, Pierre. Economia das trocas simbólicas, 2013.
[6] Plataforma Dhesca. http://www.acaoeducativa.org.br/relacoesraciais/intolerancia-religiosa/. Dossiê Intolerância Religiosa. http://intoleranciareligiosadossie.blogspot.com.br/
[7] Ver. Rocha, Daniela.  “Ganhando o Brasil para Jesus”: alguns apontamentos sobre a influência do movimento fundamentalista norte-americano sobre as práticas políticas do pentecostalismo brasileiro. Revista Horizonte, PUC-Minas, Belo Horizonte, v. 9, n. 22, p.583-604, jul./set. 2011.
[8] Para um maior aprofundamento deste debate, seria importante consultar o documento produzido por organizações religiosas de vários matizes, contra a intolerância religiosa, e sobre o Estado laico; https://br.boell.org/sites/default/files/fundamentalismo_religioso_e_estado_laico_-_reuniao_ampliada.pdf (visualizado em 30/11/2015).
[9] MAALOUF, Amin, “ Mi identidad, mis pertenencias”, en Identidades asesinas, Alianza Editorial, Madrid, 1999.
[10] Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
[12] Trancado na Câmara dos deputados desde 2014, o projeto pelo fim dos autos de resistência não avança dentro daquela casa, principalmente por intervenção da bancada da bala, e falta de uma postura determinista do governo em faze-lo andar, e caminhar para uma possível redução do assassinato de jovens negros no Brasil. http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/SEGURANCA/478917-PROJETO-DO-AUTO-DE-RESISTENCIA-ESTA-PRONTO-PARA-SER-VOTADO-NA-CAMARA.html
[14] http://www.ufscar.br/gevac/wp-content/uploads/Sum%C3%A1rio-Executivo_FINAL_01.04.2014.pdf
[15] http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2014/Mapa2014_JovensBrasil_Preliminar.pdf
[17] Ver http://www.cnmp.gov.br/portal/noticia/6446-membros-do-mp-aprovam-projeto-de-combate-ao-autos-de-resistencia?highlight=WyJhdXRvIiwiZGUiLCJyZXNpc3RcdTAwZWFuY2lhIiwiYXV0byBkZSIsImF1dG8gZGUgcmVzaXN0XHUwMGVhbmNpYSIsImRlIHJlc2lzdFx1MDBlYW5jaWEiXQ==
[18] Santos, Richard. Imagem e discurso: uma análise do programa Nova África da TV Brasil. Dissertação. Universidade Católica de Brasília, 2014.

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